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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A busca do talento

Após assistir ao espetáculo de um grande pianista, um homem vai ao músico e diz “nossa, eu daria a minha vida para tocar que nem você”, e o pianista responde com maestria “eu dei”.

Tiger Woods observando a trajetória da bola (reprodução: http://aaww.org/hello-world-how-nike-sold-tiger-woods)
O talento e a criatividade são habilidades a serem desenvolvidas como qualquer outra. Porém, isso demanda muito tempo e esforço. O cérebro humano funciona por meio da construção de hábitos e rotinas; na personalidade, estão enraizados padrões de comportamento e de percepção, portanto, para explorar novas alternativas e desenvolver novas habilidades, o indivíduo deve ir contra suas próprias tendências, se expondo ao erro e à crítica, o que é um incômodo. É necessária muita força de vontade, persistência. A transcendência do ego é de grande ajuda neste processo, fazendo com que o indivíduo não seja tomado por seus sentimentos e emoções, e possa enxergar a plenitude de cada momento; o apego ao orgulho e a necessidade de estar sempre certos, por exemplo, são grandes obstáculos no desenvolvimento de novas habilidades.


A prática esportiva competitiva muitas vezes leva à minimização do erro, e não sobra muito espaço para tentativas e para a exploração. Essa é a função do treinamento: criar um ambiente propício para o contato com o nosso interior, livre de julgamentos e de bloqueios mentais para que possamos nos expressar livremente através do movimento. Ao tentarmos algo novo, muitos erros serão cometidos antes do acerto, e se ficarmos presos ao medo do erro, não evoluiremos.  Ao quebrar essa barreira, abre-se espaço para o novo, para o inusitado.

Tiger Woods, um dos maiores golfistas de todos os tempos é um dos melhores exemplos de superação de obstáculos no desenvolvimento de novas habilidades. O trecho abaixo foi retirado do livro ‘Cabeça de Campeão’ e mostra como o “Menino Jesus negro do golfe” passou por um processo de mudança radical em seu estilo de jogo, não importando o que os outros achavam:

O questionamento constante e a busca pela perfeição.


“Com 11 anos, soma 30 títulos de campeão infanto-juvenil. Nasce a lenda, e começam os recordes. Melhor resumir o conjunto com a ajuda dessa frase do Tigre: ‘Gosto de ser único. Gosto de realizar o que nunca foi feito’. Ganhar é ser o primeiro; estabelecer um recorde é estar sozinho. A busca de Tiger Woods são os recordes.

A página ‘amador’ é virada; ele tem 20 anos, é simplesmente o maior amador de todos os tempos. E o que dizer de sua estreia entre os profissionais? Ele ganha dois de seus cinco primeiros torneios, terminando sempre entre os cinco primeiros. Fulgurante!

Depois, no dia 13 de abril de 1997, é a bomba do Masters. Neste dia, o Tigre não se contenta em ganhar um dos grandes torneios, um dos famosos Grand Slams que os campeões caçam durante a vida toda para entrar para a História. O evento é chamado de ‘bomba’, pois Tiger detonou uma fazendo todos os contadores do golfe explodirem: recorde do vencedor mais jovem, recorde do percurso e da maior diferença em relação ao segundo colocado.

O que você acha que Tiger decidiu fazer no dia seguinte a essa vitória? Festejá-la com os amigos? De forma alguma. Nos dias que se seguem, ele fica sozinho, fechado em seu quarto. Assiste à televisão, horas a fio. Na programação: Tiger Woods! Ao deixar o Masters, ele pediu as fitas do torneio. As imagens passam sem parar. Aparentemente, ele decidiu reviver cada minuto, cada gesto. Mas certamente não por prazer. Ele está claramente procurando alguma coisa. Enquanto as pessoas próximas se agitam, seus adversários treinam, o mundo gira, ele está sozinho em seu quarto, procurando, fazendo perguntas. Ele sente que algo não está certo. O timing está correto, o putting também. Mas o veredicto acaba saindo, brutal, definitivo: é o swing!

“Está tudo errado”, diz por telefone a seu técnico, que não acredita no que ouve. “É o swing, preciso mudar tudo!”. Há apenas algumas horas, Woods ganhava o torneio de maior prestígio do mundo, e da forma mais brilhante possível, mas eis que está tudo errado! Com o que ele está preocupado? Com um grãozinho de areia em seu swing, que só ele consegue ver.

Tiger Woods em ação no Masters 1997 (reprodução: bleacherreport.com)
Na verdade, ele já está se colocando diante de uma pergunta importante: “O que estou buscando? (...) Em pouco tempo, o desgaste, o cansaço, a concorrência revelarão seus limites. E, se ele próprio conhece seus limites, pode se deixar levar pelo canto da sereia e pelos elogios? Não quererá ele se aventurar até o fim, não se furtar a nada para conhecer um dia seu verdadeiro valor, para conquistar o lugar que é seu?

Woods quer retomar o movimento do zero. (...) O técnico aceita, mas previne: uma mudança desse tipo pode levar dois anos. Tiger acaba de tomar a decisão mais importante da sua vida.

De fato, Woods não ganhará praticamente mais nada nas duas próximas temporadas. A travessia do deserto será longa.

No início, o resultado é catastrófico. Começar do zero um swing desses, praticamente incrustado nos seus nervos e nos seus músculos há pelo menos 20 anos, era como desmontar um relógio. Todas as molas e peças estão lá, espalhadas sobre a mesa, mas nada mais funciona.

O problema? Difícil de descrever. A linguagem é pobre para decodificar as finas regulagens do corpo humano. Os atletas de alto rendimento falam a língua das sensações. Todo o trabalho consiste em torna-las concretas, em atribuir palavras a elas: evitar as compensações, eliminar os movimentos parasitas, focar-se nos segmentos-chave do swing, nos poucos centímetros de onde vai resultar todo o resto, aceitar perder em potência o que se ganha em precisão, e depois, tendo o gesto sido purificado, buscar novamente a potência... Encontrar o equilíbrio perfeito entre a força e a delicadeza, o meio-termo, esse corredor estreito onde a potência pode finalmente se libertar sem impedir o movimento de manter seu objetivo essencial: pode ser repetido 100 vezes seguidas do mesmo jeito.

Durante algum tempo, a imagem de Tiger Woods se deteriora. A “bomba” do Masters era apenas fogo de palha? Os patrocinadores entram em pânico vendo seu investimento derreter como neve sob o sol. A mídia, subitamente privada do alimento que deveria alimentar o monstro do ibope, persegue sua presa.
(...) Tiger aguenta tudo. Mas por quanto tempo ainda? Também ele passa por momentos de desânimo. Ele despenca no ranking: 12º, depois 25º, 33º. Ele não aparece mais na televisão. As performances dos ‘rebaixados’ acontecem quando as câmeras estão desligadas.

(...) Só o que importa são as 700 bolas que ele bate todos os dias nos campos de treinamento do mundo todo. Ninguém sabe o que ele está fazendo nos treinos, esse mundo paralelo transformado em seu mundo.
Uma noite, quando está dando tacadas, algo acontece: uma bola boa, como tantas outras, mas o impacto ecoa nele como um chamado, uma música maravilhosa vinda de lugar nenhum. É uma bola que vale ouro. Ele sente um choque atravessá-lo.

A sensação de perfeição, essa busca insana iniciada tantos meses antes e que ele não tinha certeza de conseguir levar a bom-termo, ele a sente! Neste instante preciso, ele percebe que está tudo pronto. Mil músculos, quatro membros, 20 bilhões de neurônios e nem mais uma dúvida. O novo swing tornou-se como o antigo: absolutamente natural, mas controlado, um swing para durar. Woods atingiu o êxtase que os grandes criadores conhecem: ele não tem mais um swing, ele é o seu swing.

(...) Conhecemos o resto: o início do período mais fenomenal jamais conhecido por um jogador de golfe. Ele revoluciona o golfe. As estatísticas, seculares, explodem. Os recordes são todos históricos.

Tiger Woods dirá: “Vivemos de altos e baixos. Mesmo os grandes campeões. Era só isso, sabem. Basta continuar trabalhando duro. Eu fiz isso. Farei novamente se for preciso. Mas dessa vez, levará menos tempo porque já passei por isso.


E mais tarde: “Sinto uma alegria e um orgulho enormes por ter sido capaz de trabalhar tanto. E em tantos aspectos diferentes. Foi tudo feito por etapas. No que se refere ao jogo, isso significa encontrar um segredo nos campos de treinamento”.

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