“Não é justamente a busca individual que fortalece a personalidade, que torna o homem mais responsável, e o competidor mais forte?” (Ducasse, Francois)
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Alexander Popov (reprodução: sports.people.com.cn) |
Durante o processo de educação e desenvolvimento da personalidade, nos deparamos com um grande paradoxo: aprender de acordo com a autoridade e disciplina das instituições sociais existentes (família, cultura, sociedade, escolas), mas ao mesmo tempo, nos manter independentes e insubordinados.
Este paradoxo é muito presente no
esporte, tanto amador quanto de alto rendimento. Nós acreditamos que o
treinamento diário deve buscar o equilíbrio entre esses dois opostos, e ao
mesmo tempo em que ensina através de métodos, técnicas e dinâmicas de grupo
padronizadas, também deve inspirar a criatividade, o instinto, o espontâneo, o imprevisível,
e até o incompreensível; como Tostão diz, “Não se pode confundir disciplina
com repetição, servilismo e alienação. O atleta precisa ter liberdade para
opinar, discutir, criar e ousar. Por outro lado, o talento, sem disciplina e método,
torna-se improdutivo”.
A padronização presente tanto nas
instituições de ensino formais, quanto no esporte acabam por suprimir a
criatividade e a experimentação no dia-a-dia. O estímulo à curiosidade e o
gosto pela busca se tornam difíceis quando tudo já está programado e só é
preciso continuar no mesmo caminho para alcançar o objetivo.
A liberdade no treinamento permite que o
esporte se torne uma ferramenta poderosa de autoconhecimento e desenvolvimento;
para expressar essa ideia, não há caso mais evidente do que o de Guennadi
Touretski (dono de 40 recordes mundiais de natação), treinador de Alexander
Popov, recordista dos 100m livre, quatro vezes campeão olímpico.
O trecho abaixo foi retirado do livro ‘Cabeça
de Campeão’, escrito por Francois Ducasse e Makis Chamalidis:
O mestre Touretski e o aluno Popov: “Não fazer de meu aluno a minha imagem”
O encontro entre os dois aconteceu em
1988. Touretski foi sondado pela federação soviética para instaurar, no espaço
de quatro anos, um novo programa capaz de pôr fim ao domínio americano nas
provas curtas. É nessa época que Touretski descobre Popov, ainda júnior, e
decide incluí-lo em sua lista.
No entanto, Popov só passa a integrar o
grupo dois anos mais tarde, pois, segundo ele mesmo explica: “No sistema soviético, era muito importante
que os jovens se desenvolvessem primeiro completamente em sua categoria por
idade, antes de atirá-los na piscina maior. Estimulá-los muito, muito cedo, é
hipotecar seu futuro”.
Mas, dois anos depois e alguns milhares
de quilômetros de piscina mais tarde, dessa vez sob o olhar de seu novo
treinador, Popov torna-se o responsável pela conquista do espaço aquático e os
americanos são derrotados. Missão cumprida!
O nadador confessa: “Longe da piscina, sinto-me imprestável e
preguiçoso; na água tenho a impressão de renascer”. Ele conta as lembranças
que tem dos primeiros encontros com o técnico Guennadi Touretski:
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Guennadi Touretski (reprodução:swiss-swimming.ch) |
Popov descreve suas relações no plano
humano:
Era
difícil. Quando eu tentava falar sobre um problema técnico ligado ao
treinamento, ele mudava de assunto e começava a falar sobre literatura ou
música. Só muito mais tarde entendi que, ao agir assim, ele estava tentando me
libertar da formação relativamente autoritária que eu tinha recebido, e me
estimulando a cultivar minha independência. No início, seu objetivo não era me
treinar, mas desenvolver minha personalidade! Se eu começasse a executar suas
ordens como um robô, nosso trabalho, juntos, estaria fadado ao fracasso!
Ele
acreditava que um atleta só pode se desenvolver completamente quando tem total
liberdade, e não age por obrigação. Por isso, ele fazia de tudo para não me
influenciar demais. Para Guennadi, o verdadeiro perigo era que nós fôssemos
muito próximos. Que ele me formasse à sua imagem e que se criasse uma forma de
dependência entre nós. Aliás, ele tinha cuidado para mão me dar atenção demais,
dedicava apenas um terço do seu tempo para mim, e encorajava todas as minhas
iniciativas pessoais.
No
início de uma relação, Guennadi dedica sempre mais tempo às características
psicológicas de seus atletas do que às qualidades físicas. No meu caso, por exemplo:
ele me classifica na categoria dos “postes”. Para ele, são atletas temíveis que
funcionam de forma muito cerebral. Analisam tudo obsessivamente. E, quando eles
estão um pouco perturbados, as pessoas os consideram gênios! Na verdade, sua
principal preocupação é de ordem intelectual.
Para finalizar, Popov relata suas
primeiras competições sob a direção de Touretski:
No
dia da prova, Guennadi encontra sempre uma forma de desaparecer. Impossível
encontra-lo. Ele nunca está nas redondezas. E não é superstição. Sua convicção
profunda é que, de qualquer jeito, os dados estão lançados e ele não pode mais
dar nada ao atleta. Ele não quer nem que pensem nele. Um dia, ele me disse que
se alguma coisa acontecesse com ele no caminho da competição e ele fosse preso,
isso não deveria influenciar meu comportamento. Ele teme, sempre, ser um peso
para o atleta.
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