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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O Paradoxo entre autoridade e liberdade

“Não é justamente a busca individual que fortalece a personalidade, que torna o homem mais responsável, e o competidor mais forte?” (Ducasse, Francois)


Alexander Popov
(reprodução: sports.people.com.cn)

Durante o processo de educação e desenvolvimento da personalidade, nos deparamos com um grande paradoxo: aprender de acordo com a autoridade e disciplina das instituições sociais existentes (família, cultura, sociedade, escolas), mas ao mesmo tempo, nos manter independentes e insubordinados.


Este paradoxo é muito presente no esporte, tanto amador quanto de alto rendimento. Nós acreditamos que o treinamento diário deve buscar o equilíbrio entre esses dois opostos, e ao mesmo tempo em que ensina através de métodos, técnicas e dinâmicas de grupo padronizadas, também deve inspirar a criatividade, o instinto, o espontâneo, o imprevisível, e até o incompreensível; como Tostão diz, “Não se pode confundir disciplina com repetição, servilismo e alienação. O atleta precisa ter liberdade para opinar, discutir, criar e ousar. Por outro lado, o talento, sem disciplina e método, torna-se improdutivo”.

A padronização presente tanto nas instituições de ensino formais, quanto no esporte acabam por suprimir a criatividade e a experimentação no dia-a-dia. O estímulo à curiosidade e o gosto pela busca se tornam difíceis quando tudo já está programado e só é preciso continuar no mesmo caminho para alcançar o objetivo.

A liberdade no treinamento permite que o esporte se torne uma ferramenta poderosa de autoconhecimento e desenvolvimento; para expressar essa ideia, não há caso mais evidente do que o de Guennadi Touretski (dono de 40 recordes mundiais de natação), treinador de Alexander Popov, recordista dos 100m livre, quatro vezes campeão olímpico.

O trecho abaixo foi retirado do livro ‘Cabeça de Campeão’, escrito por Francois Ducasse e Makis Chamalidis:



O mestre Touretski e o aluno Popov: “Não fazer de meu aluno a minha imagem”




O encontro entre os dois aconteceu em 1988. Touretski foi sondado pela federação soviética para instaurar, no espaço de quatro anos, um novo programa capaz de pôr fim ao domínio americano nas provas curtas. É nessa época que Touretski descobre Popov, ainda júnior, e decide incluí-lo em sua lista.

No entanto, Popov só passa a integrar o grupo dois anos mais tarde, pois, segundo ele mesmo explica: “No sistema soviético, era muito importante que os jovens se desenvolvessem primeiro completamente em sua categoria por idade, antes de atirá-los na piscina maior. Estimulá-los muito, muito cedo, é hipotecar seu futuro”.

Mas, dois anos depois e alguns milhares de quilômetros de piscina mais tarde, dessa vez sob o olhar de seu novo treinador, Popov torna-se o responsável pela conquista do espaço aquático e os americanos são derrotados. Missão cumprida!

O nadador confessa: “Longe da piscina, sinto-me imprestável e preguiçoso; na água tenho a impressão de renascer”. Ele conta as lembranças que tem dos primeiros encontros com o técnico Guennadi Touretski:

Guennadi Touretski
(reprodução:swiss-swimming.ch)
É preciso saber que, como atleta da elite soviética, estávamos acostumados a trabalhar duro. Nossos treinadores eram muito exigentes. Com Guennadi, percebi logo de cara que a abordagem era diferente. Primeiro, nós nadávamos pouco, em comparação aos outros grupos. Em compensação, passeávamos muito na montanha e tínhamos muita liberdade. Ele não estava sempre presente aos treinos. O aquecimento também era livre. Nós jogávamos bola! Tudo isso era muito desorientador para mim.

Popov descreve suas relações no plano humano:

Era difícil. Quando eu tentava falar sobre um problema técnico ligado ao treinamento, ele mudava de assunto e começava a falar sobre literatura ou música. Só muito mais tarde entendi que, ao agir assim, ele estava tentando me libertar da formação relativamente autoritária que eu tinha recebido, e me estimulando a cultivar minha independência. No início, seu objetivo não era me treinar, mas desenvolver minha personalidade! Se eu começasse a executar suas ordens como um robô, nosso trabalho, juntos, estaria fadado ao fracasso!

Ele acreditava que um atleta só pode se desenvolver completamente quando tem total liberdade, e não age por obrigação. Por isso, ele fazia de tudo para não me influenciar demais. Para Guennadi, o verdadeiro perigo era que nós fôssemos muito próximos. Que ele me formasse à sua imagem e que se criasse uma forma de dependência entre nós. Aliás, ele tinha cuidado para mão me dar atenção demais, dedicava apenas um terço do seu tempo para mim, e encorajava todas as minhas iniciativas pessoais.

No início de uma relação, Guennadi dedica sempre mais tempo às características psicológicas de seus atletas do que às qualidades físicas. No meu caso, por exemplo: ele me classifica na categoria dos “postes”. Para ele, são atletas temíveis que funcionam de forma muito cerebral. Analisam tudo obsessivamente. E, quando eles estão um pouco perturbados, as pessoas os consideram gênios! Na verdade, sua principal preocupação é de ordem intelectual.

Para finalizar, Popov relata suas primeiras competições sob a direção de Touretski:


No dia da prova, Guennadi encontra sempre uma forma de desaparecer. Impossível encontra-lo. Ele nunca está nas redondezas. E não é superstição. Sua convicção profunda é que, de qualquer jeito, os dados estão lançados e ele não pode mais dar nada ao atleta. Ele não quer nem que pensem nele. Um dia, ele me disse que se alguma coisa acontecesse com ele no caminho da competição e ele fosse preso, isso não deveria influenciar meu comportamento. Ele teme, sempre, ser um peso para o atleta.

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